sábado, outubro 13, 2007

Vinci e poucos

O sonho da argila

O vocábulo puro, em que me amparo,
esquiva-se a meu jugo, e raro canto.
Que a palavra da boca é sempre inútil
se o sopro não lhe vem do coração.

Mudo, contemplo os valorosos feitos
de quem funda caminhos sobre os mares
e edifica cidades, e ergue torres
de cujo topo logre dominar
o mundo inteiro
- e ver que o mundo é pouco.

Ante os que, cegos, trabalham a terra,
sorvendo-lhe os tesouros mais esconsos,
sem assombro, no convívio dos bois,
com eles aprendendo a ser humildes,
e dormem, vinda a noite, sossegados,
- permaneço calado, e todavia
algo em mim lhes inveja esse dormir.

Não me pranteio por saber-me turvo
ou por não me caber a paz dos brutos.
Sei que morro amanhã, mas não me louvo
a sóbria face que disfarça o medo.

Move-me ao canto ver que a sombra cresce
dentro de mim, enquanto um sol avaro
esplende oculto - em céus só vislumbrados
quando a argila, grotesca e ousada, sonha.
E ver o inútil dessa argila em sonho,
mais que mover-me ao canto, me comove.

Thiago de Mello

* * *

Gosto muito de poesia de diversos tipos, mas tenho uma tendência a apreciar de modo muito especial os poemas que dizem as coisas que eu próprio gostaria de dizer, se soubesse como. Aqueles que a gente lê e, simultaneamente à admiração, sente uma ponta (ou um iceberg) de inveja: "Deus do céu, o que eu não daria para ter escrito isso!" Um dos mais admiráveis exemplos da minha galeria é o poema acima, de autoria do amazonense Thiago de Mello - um poeta, diga-se de passagem, que mereceria fama muito maior que a que tem.

O motivo de gostar tanto desse poema em particular é que ele levanta uma questão com a qual eu próprio me debato. Muito já se disse e escreveu sobre a "solidão do gênio" - mas como se arranjam os que sofrem dessa mesma solidão, sem ao menos serem gênios? É natural que todos os que realizam grandes coisas sejam, inevitavelmente, criaturas solitárias, mas ao menos eles têm a consciência de suas realizações para se confortarem... E como ficam os que vivem no "limbo", os que pensam, e por isso perderam o direito à tranqüilidade da ignorância (a "paz dos brutos" de que fala Thiago de Mello), mas não têm suficiente talento para grandes feitos?

O simples fato de alguém adquirir um bocadinho de cultura, e, conseqüentemente, desenvolver uma mentalidade que ultrapasse ligeiramente o medíocre, basta para condenar essa pessoa a uma solidão não menos dolorosa do que aquela que devia afligir Leonardo da Vinci - mas sem trazer como compensação a capacidade de pintar uma Mona Lisa, arquitetar edifícios grandiosos, inventar máquinas mirabolantes, falar várias línguas, esculpir, compor, tocar vários instrumentos musicais... Entre outras "coisinhas" que esse senhor fazia.

A sensação de estar sempre nadando contra a correnteza é aflitiva, e ainda mais aflitiva se torna quando nos damos conta de que há mais: quando se está nadando contra a correnteza e, além disso, nadando no meio de uma multidão de pessoas que nem percebem que existe uma correnteza. Perceber que todo o nosso sistema de valores é particular - quer dizer, que temos noções diferentes das de todos sobre o que é importante e o que não é - implica uma visão diferente do mundo. Num certo sentido, em viver num outro mundo. Um mundo onde ter cultura vale mais que ter um peitoral definido, onde o conhecimento deve servir para fazer de nós seres humanos mais plenos, e não meramente para ganhar dinheiro, um mundo onde nenhum carro do ano na garagem e nenhum nível de status valem o ato de vender a alma a um sistema desumano.

Entendo que Thiago de Mello fala da aflição de estar acordado num mundo onde todos parecem profundamente adormecidos, e, para além disso, da outra aflição, a de saber que outros que despertaram antes de nós realizaram grandes feitos pelos quais serão lembrados para sempre, e que isso não é para todos - nem mesmo para todos os que estão acordados. Porém, há o conforto de saber que, mesmo sem fazer algo que ponha nosso nome nas páginas da História, podemos fazer algumas coisas para que este mundo ganhe um pouco mais de sentido.

Estar acordado vale a pena.

3 comentários:

Geo²rgia disse...

Estar acordado vale a pena sim...Mas chega uma hora que a sensacao que temos eh de estar numa terra com o fuso horario diferente...Todos dormem e so vc segue desperto. As vezes a solidao vira desespero, outras, uma excelente companhia...Beijos

Anônimo disse...

Acho que já debatemos isso há algum tempo por carta!!! :)

Enfim... Não posso me considerar desperta de forma alguma, embora não compartilhe essa minha "irrealidade" a esse mundo a qual você se referiu.
Muitos de nós, embora possuidores da capacidade de gênios não pode fazer muita coisa, mas pode fazer o suficiente para pelo menos sua própria vida fazer mais sentido. É isso que faço enquanto tento nadar contra a corrente: e não estou sozinha!

Anônimo disse...

Post deveras interessante nesta página, post deste modo dão valor a quem observar neste blog :/
Entrega muito mais do teu espaço, aos teus visitantes.